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MOURISCAS - TERRAS E GENTES

Criado em 2004 para falar de Mouriscas e das suas gentes. Muitos artigos foram transferidos doutro espaço. Podem ter desaparecido parágrafos ou espaços entre palavras, mas, em geral, os conteúdos serão legíveis e compreensíveis.

MOURISCAS - TERRAS E GENTES

Criado em 2004 para falar de Mouriscas e das suas gentes. Muitos artigos foram transferidos doutro espaço. Podem ter desaparecido parágrafos ou espaços entre palavras, mas, em geral, os conteúdos serão legíveis e compreensíveis.

Padre Severino Ferreira Sant’Anna

26.04.06 | João Manuel Maia Alves
Padre Severino.jpgEm 26 de Outubro de 1903 faleceu em Alvega o Pe. Severino Ferreira Sant’Anna, um ilustre mourisquense. Era filho de António Ferreira Sant´Anna, nascido em Alagoa, freguesia do concelho de Portalegre e de Luiza Lopes, do Cabeço do Alconde, então pertencente à freguesia de S. João, do concelho de Abrantes. A este casal e seus descendentes este blogue dedicou uma série de artigos com o título “Santanas”, escritos por Augusto Maia Alves, ele próprio descendente em sexto grau.Neste artigo e no próximo reproduzimos a notícia da morte da morte do Pe. Severino Ferreira Sant´Anna saída no número de 1 de Novembro de 1903 do jornal “Echo do Tejo”, que se publicou em Abrantes. Mantemos a ortografia usada na redacção da notícia.A fama de pregador do Pe. Severino Severino Ferreira Sant’Anna perdurou em Mouriscas durante várias décadas. Vejamos então o artigo do “Echo do Tejo”. Pe. SEVERINO FERREIRA SANT´ANNAAinda se não esvairam as lagrimas com que a população alveguense, n'uma homenagem collectiva, orvalhou a campa que vedou para sempre aos olhares do mundo a figura insinuante de bondade do seu pastor espiritual; ainda aquelles mesmos que o viram a caminho do tumulo descrêem n'uma realidade tão pungente, como se a morte não tivesse demonstrado por mais de uma vez que tambem os justos são victimas do seu genio destruidor.Nada a demove dos seus propositos: nem as supplicas dos que vêm sumir-se na escuridão do tumulo a mão protectora que lhes mitigava as miserias, nem os gritos lacrimosos dos que vêm transpor as fronteiras da eternidade uma alma que se abria para compartilhar dos soffrimentos alheios, nem ainda a tristeza solitaria d'aquelles que ficam privadas dos seus conselhos proficuos. Ella passa e não escolhe. Arrasta adiante de si com a mesma incomplacencia os proprios que se nos afiguram mais dignos de ser poupados.E victima d'esta fatalidade lá foi no dia 27 caminho do tumulo, seguido de um cortejo de lagrimas e de um côro de suspiros o parocho da freguezia de Alvega. Humilde, compassivo, caridoso e dedicado ao seu rebanho a ponto de lhe sacrificar os interesses materiaes, a saude e até a vida, o Pe. Severino, que nasceu para o sacerdocio e morreu pelo sacerdocio, é um dos mais perfeitos prototypos que conhecemos dos pregadores da doutrina de Jesus.Aos seus superiores dotes moraes, aliava os requisitos physicos do bom orador sagrado.Dotando-o de um figura insinuante, d'uma voz agradabilissima e d'uma constituição robusta, quiz a providencia reunir n'elle as qualidades do bom padre chamado ao desempenho do espinhoso ministerio evangelico.Mas tudo isso desappareceu para só nos restar do conhecido Pe. Severino a recordação saudosa de um amigo sincero e bom, e difficilmente substituivel.O P.c Severino Ferreira Sant'Anna nasceu na Quinta de Santo António, nas Mouriscas, hoje pretencente a um sobrinho do finado, a 17 de novembro de 1832. Seu pae, Antonio Ferreira de Sant’Anna, homem piedoso e digno de um tal filho, dedicou-o á vida ecclesiastica e encontrou no joven Severino uma vocação capaz de realisar a sua vontade. Aproveitou-a e mandou-o para a Certã onde estudou a lingua latina que traduzia com facilidade e correcção. D’ahi foi para Castello Branco hospedando-se em casa da familia Pina das relações do pae do joven estudante. Foi na capital da Beira Baixa que cursou Rhetorica, Logica e Theologia.Aos 21 annos tinha concluido o curso eccleciastico, e durante o tempo que mediou até á recepção da ordem de presbytero fez a sua entrada na oratoria sacra.Começaram então os seus triumphos. Quando ainda diacono, foi convidado pelo vigario geral para prégar um sermão de responsabilidade na sé de Castello Branco, sermão que nenhum dos muitos ecclesiasticos da cidade quizera acceitar. Acceitou-o o Pe. Severino, e foi então que elle se consagrou como orador bem acima do trivial.Assistiram as autoridades ecclesiasticas, militares, judiciaes, e administrativas, e todos, mesmo os que não o conheciam, deram os parabens ao prégador e o incitaram a continuar o munus da prégação. Ainda não conhecemos ninguem que melhor reflectisse no rosto a emoção correspondentente ás expressões que pronunciava. O tom de convicção que imprimia nos discursos, a elegancia da voz, a clareza dos pensamentos, a robustez physica e o conhecimento da escriptura, tornaram-no orador de qualidades não vulgares. Chegou a pregar os sermões de cada domingo da quaresma em Abrantes, Alvega e Mouriscas.Aos 23 annos ordenou-se de presbytero e celebrou a sua primeira missa com grande pompa em janeiro de 1856. Estava vivendo no lar paterno, verdadeiro sanctuario de harmonia e dizia missa ao domingo nos Casaes, quando se impossibilitou o Pe. Luiz Bello, então cura de Alvega e o joven presbytero foi nomeado coadjuctor do parocho impossibilitado.Não foi sem que vertesse muitas lagrimas que elle, em novembro do mesmo anno, deixou os dois velhos venerandos que extremecia. Só o consolava a esperança de que em breve voltaria ao lar paterno. Não succedeu assim. Em Alvega começou convivendo com a fidalga e religiosa familia Azevedo, da Quinta do Pombal, e tão extremecido se tornou d'ella, que não havia festa intima em casa para que o novo parocho não fosse convidado. Pouco tempo depois fallecia o cura Luiz Bello e não decorreram muitos mezes sem que na parochia se realisasse a collação [Nota: collação, colação na ortografia actual, significa nomeação para cargo eclesiástico] do Pe. Severino pela influencia de João Azevedo.Em Alvega se demorou até á morte. Casou alguns parochianos de quem baptisou bisnetos.Podia elle ter passado para outra parochia em que auferisse mais avultados proventos, porque para isso lhe não faltaram instigações, mas de tal modo se afeiçoou ao seu rebanho, que nunca mais o abandonou. Os 47 annos da sua vida parochial, passou-os em Alvega, empregando sempre a sua palavra autorisada a favor da harmonia entre os seus parochianos e esforçando-se por mantel-os no caminho da rectidão e do bem Quantas vezes elle exerceu a sublime virtude da caridade, deixando esmolas debaixo do travesseiro dos enfermos pobres a quem ia ministrar os soccorros espirituaes, quantas discordias terminou com a sua palavra conciliadora, quantas lagrimas apagou com os seus conselhos de resignação e de esperança. Que o digam aquelles que viveram perto d’elle, ou que o chamaram nas horas da desventura.(Continua)

Mouriscas e o Caminho de Ferro

19.04.06 | João Manuel Maia Alves

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A freguesia de Mouriscas e os seus habitantes sempre mantiveram uma forte ligação ao caminho de ferro, a qual se iniciou, por certo, no período da construção da linha da Beira Baixa, no troço Abrantes-Covilhã. Desde esses tempos que os aspectos sócio-económicos e culturais da vida das pessoas de Mouriscas foram influenciados pela ferrovia.

A construção da Linha da Beira Baixa ocorreu no final da década 1880-90, tendo sido inaugurada no troço Abrantes-Covilhã no ano de 1891. O projecto da estação de Mouriscas data de 1890 e a sua construção terá ocorrido entre 1890 e 1891.

 

Por volta do ano de 1958 foram substituídos os tabuleiros metálicos de algumas das pontes existentes na freguesia, obras estas que na altura tinham alguma dimensão e eram objecto de observação por parte de alguns mourisquenses.

 

Entretanto, em 1975, para dar satisfação à necessidade de transporte de muitos operários residentes na parte sul da freguesia que trabalhavam nas oficinas do Entroncamento, foi construído o apeadeiro de Mouriscas-A pelos trabalhadores residentes em Mouriscas, portanto sem qualquer custo para a CP, dando assim satisfação a uma reivindicação dos mourisquenses, a qual já havia sido formalizada uns anos antes pela Junta de Freguesia.

 

A linha viria a ser renovada, com a substituição dos carris, travessas e balastro no ano de 1977, permitindo assim maiores velocidades aos comboios. Posteriormente e para dar satisfação às necessidades de transporte de carvão para a central do Pego, foi decidido que a inserção do ramal para a central seria construída na freguesia de Mouriscas, por alternativa a uma outra solução que previa que o ramal se iniciava próximo da estação de Abrantes. A decisão de construir o ramal a partir do “apeadeiro” e a consequente ponte sobre o Tejo que foi necessário construir não foi alheia aos esforços de alguns mourisquenses que se interessaram para que fosse essa a solução. Para concretizar este projecto, foi necessário construir uma nova estação no local do apeadeiro, com duas linhas, de onde parte o ramal, electrificá-las, montando a respectiva catenária, e ainda instalando sinalização do tipo electrónico. A ponte que foi construída sobre o Tejo foi ainda considerada com tabuleiro rodoviário, o que se traduziu também como uma mais-valia para Mouriscas.

 

Sob o ponto de vista da acção do caminho de ferro sobre a vida das pessoas de Mouriscas e das suas actividades, quer profissionais quer económicas, sempre se tem verificado uma grande interactividade nos dois sentidos, com consequências benéficas para as duas partes. Por um lado, o caminho de ferro ganhou com a admissão de muitos mourisquenses, que foram sempre bons profissionais, dedicados e competentes; por outro, os habitantes de Mouriscas e as suas famílias também tiveram benefícios, pois que entraram para a CP muitas pessoas nas décadas de quarenta e cinquenta quando o emprego não abundava. Estes mourisquenses tiveram depois a vantagem de se valorizar profissionalmente ao longo de uma carreira e de ser colocados em locais onde existiam liceus e escolas industriais e comerciais, facilitando assim, o ingresso dos seus filhos nesses estabelecimentos de ensino. Estas pessoas eram, e algumas ainda são, conhecidas na CP, como bons chefes de estação, inspectores, operários, contramestres e outros.

 

Consta ainda que na construção da linha intervieram operários vindos de vários pontos do país, nomeadamente do Minho, alguns dos quais se vieram a fixar em Mouriscas. Alguns familiares seus descendentes ficaram conhecidos, por esse facto, como “minhotos”. Não se sabe ao certo, mas também é provável que o apelido Sertaínho ou Certaínho tenha a ver com pessoas oriundas da Sertã que aqui se fixaram pelo mesmo motivo.

Quem não ouviu já falar da “Universidade Ferroviária das Mouriscas”, onde o saudoso Professor Matias Lopes Raposo preparava, com as suas aulas, os candidatos à admissão à CP? Tinham de fazer um exame de admissão bastante rigoroso para serem admitidos. Como iam com uma boa preparação, ficavam sempre bem classificados e entravam com facilidade. Vinham até explicandos de outras terras, por exemplo da zona de Castelo Branco para receber lições do Professor Raposo. Terá sido a partir desta iniciativa que se veio a fundar, mais tarde, o Colégio Infante de Sagres, o qual também é um forte merecedor de um escrito neste blogue.

 

A existência da estação de Mouriscas foi também importante para a actividade económica da freguesia, pois que era a partir dali que se transportavam parte dos produtos produzidos nesta freguesia, como as seiras e capachos para os lagares de azeite, os produtos cerâmicos e talvez algum azeite. E quem não se lembra do Tio Zé Valente, que na sua mula ou na carroça transportava todas as madrugadas e ao fim do dia, o correio, do e para o chamado “comboio-correio”?

 

Na área dos passageiros, também numa época em que os transportes públicos e os carros particulares não abundavam, era o comboio o principal meio de deslocação da população de Mouriscas. Era este o transporte utilizado pelas “mulheres dos ovos”, que compravam ovos às pessoas que criavam galinhas e os levavam para Lisboa para serem distribuídos pelo comércio. A venda dos ovos constituía uma receita para as criadoras e também para quem os transportava para o local do consumo, pois que essas pessoas, normalmente, eram familiares de ferroviários e como tinham “o quarto” pagavam pouco ou nada nas viagens de comboio.

 

Como actividades complementares a este transporte de passageiros, referem-se o táxi do Baptista e a taberna do Raposo, irmão do Professor Raposo, e outra que ali existiu, do Galinha, que prestavam o apoio gastronómico, e “matavam a sede” aos passageiros.

 

Recordam-se aqui três dos chefes mais antigos da nossa freguesia: na estação de Santa Apolónia o Sr. Leonel Dias Agudo e na estação de Mouriscas, o Sr. Matos (do café) e o Sr. Sabino.


Alberto Grossinho

 

Tonho Teso

12.04.06 | João Manuel Maia Alves
Natural de Longomel, perto de Ponte de Sor, segundo alguns, ou de Seia, na opinião de outros, Tonho Teso, viveu largos anos na nossa freguesia, no lugar da Carreira. Nas décadas de quarenta e cinquenta exercia uma actividade muito útil para as donas de casa, sobretudo na área dos casais mais próximos da sua residência, sendo estimado por toda a gente

Andava de casa em casa, trazendo às costas a sua mala da ferramenta construída em madeira. Punha gatos em alguidares e outros utensílios de barro que se encontravam partidos, consertava sombrinhas, afiava facas e tesouras e fazia outros pequenos consertos do tipo dos referidos. Na sua mala havia de tudo: ferramentas, arames, a célebre lata da “coina”, a sua “ piorra” e outros materiais que usava nos seus trabalhos.

Os gatos que colocava para reparar as peças de barro eram feitos de arame esbatido à martelada sobre uma peça de ferro tipo bigorna. Tinham mais ou menos cinco centímetros, consoante o tamanho da peça a reparar e com as pontas dobradas, para entrarem nos furos, e manter, assim, as duas partes da peça apertadas. Os gatos eram depois envolvidos por uma cola feita pelo próprio, a que chamava “coina” pois que o Tio Tonho Teso, tinha alguma dificuldade em pronunciar os eles e os erres.

Para abrir os furos no barro utilizava um engenho muito interessante a que chamava “piorra”, o qual se poderá considerar o antecedente do berbequim. Constava de um eixo em madeira com uma “ broca” na ponta (feita de uma vareta de sombrinha, por ser de aço, afiada em forma de cunha) e uma bola, em forma de pião, que servia de volante para imprimir mais força ao movimento. Tinha ainda um fio, colocado em forma de V invertido, que era fixado no outro extremo do eixo, a meio, e com as duas pontas presas nos extremos de uma barra furada para passar o eixo. A força era exercida pela mão na barra, para baixo e para cima, enrolando e desenrolando o fio e provocando um movimento rotativo alternado da broca que lá ia abrindo o furo. Ao furar o barro, ia dizendo: “zuca catatumba, zuca catatumba”.

O Tio Tonho Teso tinha as suas manhas, pois, quando não lhe apetecia trabalhar, dizia para as pessoas: “ hoje não, não tenho coina, não tenho vagá, já agóa fica p`outo dia”.

O custo dos seus trabalhos também era quase sempre o mesmo - “ dez tostões”, fosse qual fosse o número de gatos.

Gostava de brincar com os miúdos e fazer-lhes as suas ofertas, os seus célebres anéis, feitos também em arame achatado, ao qual era dada a forma redonda através de umas formas de barro que tinha.

E também gostava de passear com o seu amigo “ Zé da Varge”, José da Várzea, que era pedreiro de paredes de pedra seca e especialista em fazer fornos. Quando passeavam em Lisboa, onde se deslocavam de comboio, o Tio Tonho Teso costumava dizer ao amigo, com a sua pronúncia típica: “ Zezito da Varge, não olha pa tás nem pá fente , senão vem o polícia e pende a gente”.

Vivia só, mas tinha as suas galinhas, e quando se referia a elas dizia “ as minhas galinhas comem tudo o que lhe deito, comem toucinho conuno (cru), comem pele de faneia (farinheira), comem tudo o que lhe deito. Acabou por morrer também sozinho, tendo sido encontrado já sem vida pelos vizinhos na casa onde morava.

Ainda hoje as pessoas mais velhas que utilizaram os seus serviços referem a falta de um Tonho Teso para fazer aqueles pequenos arranjos que já não há quem os faça.

Procurou-se transcrever duma forma o mais fiel possível os termos e as frases utilizados pelo Tio Tonho Teso.

Agradeço aos irmãos Israel e Ernesto de Matos Dias a recordação de alguns ditos incluídos neste texto.


Alberto Grossinho