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MOURISCAS - TERRAS E GENTES

Criado em 2004 para falar de Mouriscas e das suas gentes. Muitos artigos foram transferidos doutro espaço. Podem ter desaparecido parágrafos ou espaços entre palavras, mas, em geral, os conteúdos serão legíveis e compreensíveis.

MOURISCAS - TERRAS E GENTES

Criado em 2004 para falar de Mouriscas e das suas gentes. Muitos artigos foram transferidos doutro espaço. Podem ter desaparecido parágrafos ou espaços entre palavras, mas, em geral, os conteúdos serão legíveis e compreensíveis.

Casamentos à moda antiga (2)

24.05.16 | João Manuel Maia Alves

Publicado inicialmente em 31 de maio de 2009

Vamos imaginar como se poderia ter desenrolado um casamento em Mouriscas há umas décadas.

É voz corrente que os noivos têm um bom arranjo. Em linguagem mourisquense tal significa que os pais tem muitos bens - muitos à escala mourisquense. São terras de cultivo. Os noivos vão continuar a tradição familiar do amanho da terra, numa localidade que já conta com muita gente com empregos de colarinho branco, como se há de dizer daqui a uns anos - fatores do caminho de ferro, empregados de escritório, professores primários e pessoas com cursos superiores.

Foi construída uma casa para os noivos, não longe da casa dos pais dela, que é filha única.

Em casa dos pais dos noivos desde manhã cedo se trabalha para que tudo corra bem. O noivo foi ao barbeiro. Voltou bem escanhoado. O barbeiro esmerou-se no seu trabalho e não poupou na brilhantina e na água-de-cheiro.

A meio da manhã começam a chegar às casas dos pais os convidados. Muitos tiveram de andar muitos quilómetros a pé nesta terra com um povoamento tão disperso. Um comentário se ouve da boca de muitas donas de casa – é-lhes difícil comparecer a festas porque é preciso deixar tudo tratado e os vivos dão muito trabalho. Os vivos são os animais domésticos.

Os convidados são quase todos pessoas do campo. Muitos envergam fatos novos. Alfaiates e costureiras têm tido muito trabalho. Pais, noivos e padrinhos é obrigatório estrearem fatos novos. Muitos convidados também trajam galas novas. Aos muitos sapateiros de Mouriscas não tem faltado serviço por causa de casamentos.

A elegância desta gente é a que é de esperar da época, dos gostos pessoais e do ambiente campestre. Pessoas da cidade talvez não considerem elegantes por aí além os participantes desta festa. Os rudes trabalhos do campo também não contribuem para elegâncias – os corpos são fortes mas de aspeto algo pesado. Quase todos os homens vestem fatos a pender para o escuro, usam colete, em muitos casos com uma corrente de oiro e cobrem as cabeças com chapéus. Nas mulheres também as cores escuras imperam. Algumas ostentam cordões de oiro.

Um casamento é uma festa para a miudagem. Muitos não cabem em si de contentes pela festa e pela farpela e sapatos novos. Começam a juntar-se e a fazer traquinices ou, como é comum ouvir em Mouriscas nestes tempos, a fazer judiarias, o que origina um curioso comentário: moços, nem o diabo quis nada com eles. Os convidados entretêm-se à conversa uns com os outros enquanto se servem de bolos e bebidas que cobrem longas mesas. Daí a bocado abancam para o almoço. O noivo almoça em casa dos pais entre os padrinhos, a noiva na casa que tem sido a sua, isto é, em casa dos pais, entre as suas duas madrinhas.

Alguns dos convidados já assistiram a casamentos em Lisboa e ficaram muito mal impressionados. Na sua opinião, os casamentos de gente fina não têm graça nenhuma com o que chamam copo-de-água, onde comem em pé e à mão umas coisas sem sabor nenhum, ficando no fim todos cheios de fome. Além disso, havia mulheres todas pintadas e - vergonha das vergonhas – a fumar como homens. As pessoas que vêm a este casamento não querem nada parecido. Esperam um casamento bem à moda de Mouriscas, com muito comer e alegria.

Cozinheiras especializadas em casamentos foram contratadas. Não vai faltar comida em abundância. Esta gente, quase vegetariana, nestes dois dias de festa vai consumir muita carne. Muito vinho e muita fruta, principalmente melão e melancia, não faltarão.

Acabado o alegre e abundante almoço em casa dos pais do noivo, forma-se um cortejo, que se vai dirigir à casa dos pais da noiva, a dois quilómetros de distância, por caminhos poeirentos. O noivo vai à frente, entre os dois padrinhos. A mãe ficou em casa, cuidando das operações domésticas.

À porta da casa dos pais da noiva, muito senhor do seu papel, está o dono da casa, fazendo um esforço para conter tanta alegria. Viva lá, compadre! diz para o pai do noivo. Um casamento dá origem em Mouriscas a uma complexa rede de compadres e comadres. Os pais e avós de cada um dos noivos vão tornar-se compadres dos pais e avôs do outro e dos padrinhos e madrinhas. Também os casais de padrinhos e madrinhas se tornam compadres e comadres entre si.

Os convidados do noivo entram brevemente em casa dos pais da noiva. Há muita alegria e troca de cumprimentos e comem-se mais uns bolos e engolem-se mais umas bebidas.

Agora forma-se um cortejo conjunto, que se dirige à igreja. À frente vai a noiva, ladeada pelas madrinhas, a seguir o noivo, entre os padrinhos. A noiva veste um vestido branco. Na mão leva um ramo de flores. O cortejo terá de percorrer uns três quilómetros, com algumas subidas acentuadas, até atingir a igreja. Atrás, enchendo o caminho de lado a lado, vão os convidados, com muitas mulheres separadas dos maridos. A caminho da igreja as pessoas falam do que veem e do que lhes interessa mais – aquela horta bem cuidada, as colheitas do ano, etc.

Ao fim de longo caminhar nesta tarde quente, lá chegam à igreja, um pouco atrasados, o que não deixa satisfeito o padre, que tem outros serviços marcados para o resto do dia.

Os noivos ficam lado a lado em frente do altar, ladeados pelas duas madrinhas. O sacristão pede um voluntário. Este e os padrinhos dirigem-se à sacristia. Passados alguns instantes, surgem os três, vestindo opas (capas sem manga) encarnadas. Vão colocar-se do lado direito do altar, os padrinhos segurando castiçais com velas acesas e o terceiro homem, no meio, empunhando um grande crucifixo. Quase todos sentem a solenidade do momento. Imagens de santos, que parecem pessoas vivas a olhar para os assistentes, adensam o ambiente.

Passados uns momentos surge o padre, um homem de aspeto maciço nos seus sessenta anos bem conservados. Enverga uma curta capa branca por cima de vestes negras. O sacristão veste uma opa vermelha. Virado para os assistentes e com voz forte o pároco diz, ao mesmo tempo que se benze: em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Começou a cerimónia.

(Continua)

Autor do artigo: João Manuel Maia Alves