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MOURISCAS - TERRAS E GENTES

Criado em 2004 para falar de Mouriscas e das suas gentes. Muitos artigos foram transferidos doutro espaço. Podem ter desaparecido parágrafos ou espaços entre palavras, mas, em geral, os conteúdos serão legíveis e compreensíveis.

MOURISCAS - TERRAS E GENTES

Criado em 2004 para falar de Mouriscas e das suas gentes. Muitos artigos foram transferidos doutro espaço. Podem ter desaparecido parágrafos ou espaços entre palavras, mas, em geral, os conteúdos serão legíveis e compreensíveis.

Universidade Ferroviária de Mouriscas

24.05.11 | João Manuel Maia Alves

Nos anos 30 e 40 do século passado a maioria dos habitantes de Mouriscas dedicava-se a tarefas agrícolas. A propriedade estava muito dividida e todos os cantinhos eram cultivados. Alguns só trabalhavam as suas terras, outros as suas e as alheias e ainda outros só as alheias.

Outras atividades incluíam o trabalho nos numerosos fornos de telha e tijolo, no sul da freguesia, e o necessário e constante transporte de carradas de mato a partir das Lercas, onde homens designados por roçadores cortavam o mato para ser carregado e transportado em carros de bois ou mulas. No tempo da azeitona muitos homens trabalhavam em lagares, às vezes em terras longínquas. Muitos homens e mulheres iam a ceifas no Alentejo. Algumas mulheres iam para o Ribatejo para as mondas do arroz, donde muitas regressavam com sezões, outro nome do paludismo. Outras pessoas trabalhavam nas várias oficinas de espartaria e nas de fogo de artifício.

Ao terminar a escola primária esperava-se que um rapaz fosse aprender um ofício, como o de pedreiro, serralheiro, ou carpinteiro, ou começasse a trabalhar no campo. Alguns conseguiam emprego nas indústrias do Tramagal e do Rossio ao Sul do Tejo. Um ou outro ia para centros maiores e mais afastados trabalhar em atividades como o comércio ou a indústria.

Na sua maioria, os rapazes começavam, terminada a escola primária, a trabalhar em atividades agrícolas, como a guarda de gado, sementeiras, sachas, trabalhos de horta e apanha da azeitona, com os familiares em propriedades suas ou contratados por outros.

Quem trabalhava por conta alheia enfrentava vários problemas. Era preciso que houvesse trabalho e quem lho oferecesse e sujeitava-se às jornas oferecidas. Alguns trabalhos tinham caráter sazonal. Por exemplo, os fornos paravam no inverno, não sendo, por isso, necessário roçar ou transportar mato nessa altura do ano. A apanha da azeitona só ocorria no outono e no inverno. Quando chovia não se podia trabalhar nos campos. Como resultado de todos estes fatores, não era fácil conseguir remunerações regulares, a que se juntava a dureza do trabalho, prestado de sol a sol, e o pequeno ganho proporcionado por atividades artesanais e de pouca produtividade.

Se uns viviam contentes com o que tinham e o futuro lhes prometia, outros eram mais inconformados e desejavam uma vida melhor, com remunerações regulares, menos esforço e o conforto que o dinheiro e um meio diferente poderiam proporcionar. No entanto, não abundavam as oportunidades que poderiam abrir a porta a melhores condições de vida. A indústria era incipiente, o setor dos serviços pouco desenvolvido, o comércio não tinha capacidade para absorver muito mais mão de obra. Além disso, para aceder a empregos como o de empregado dos correios era preciso estudar um pouco mais e submeter-se a exames. Os habitantes dos meios rurais estavam em nítida desvantagem, pois era nas cidades e vilas que havia mais facilidade de estudo. Um rapaz de Mouriscas que sonhasse ser, por exemplo, empregado num banco enfrentava dificuldades. Poderia mesmo acontecer que o relativamente abastado pai quisesse manter o filho na agricultura ou não mostrasse disposição para gastar dinheiro na sua educação. Das filhas nem se fala; eram criadas para ser donas de casa e, por isso, não precisavam de estudar.

Verdade seja que Mouriscas já era uma terra em termos educacionais muito à frente da maioria. Localidades há onde até não há muitos anos uma pessoa com um curso superior era uma raridade. Em Mouriscas, pelo contrário, já no século XIX houve pessoas muito instruídas. No século seguinte, a partir do início, muita gente tirou cursos e atingiu postos elevados. Vários fatores terão contribuído para isso, não tendo talvez sido dos menos importantes os bons exemplos e a largueza de vistas de alguns pais. Se tudo isto é verdade, não o é menos que para a maioria eram grandes as dificuldades para ascender a uma vida diferente. Iria, no entanto, acontecer nos anos 30 e 40 algo de extraordinário que mudou o destino de Mouriscas e o de muitos mourisquenses.

O mourisquense Matias Lopes Raposo, nascido nos Engarnais Cimeiros em 1891, que há muito dava aulas do ensino primário no centro de Mouriscas e era um homem muito culto e excelente e exigente professor, começou ainda nos anos 30 a preparar rapazes para os concursos dos concursos para empregados do correios e do caminho de ferro. Teve tanto êxito que as suas aulas se tornaram conhecidas e atraíram a Mouriscas rapazes de terras próximas como Belver e Alferrarede, outras menos próximas como o Gavião e outras bem afastadas como Alcains, a Sertã, Marvão ou localidades do Oeste.

A atividade atingiu grandes proporções e o Prof Raposo, que também estava encarregado do Registo Civil e tinha de dar as suas aulas de professor do ensino primário, teve de dividir tarefas com a esposa, D. Maria Amélia Moreira, natural de Vila Fernando, perto de Elvas, a filha, D. Cremilde e o genro, Dr. João Santana Maia, médico.

 

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Prof. Raposo, D. Cremilde, Dr. Santana Maia e D. Maria Amélia

 

O Dr. Santana Maia, nascido no Casal da Figueira em 1906, tinha escolhido a sua terra natal para exercer a sua profissão de médico, rejeitando convites para continuar em Coimbra e para exercer em Abrantes. Algumas pessoas ainda se lembram de ele percorrer toda a freguesia montado numa égua para visitar doentes. Antes de cursar Medicina frequentou outros cursos, os quais lhe deram conhecimentos de Física e Matemática e o habitaram a dar explicações dessas matérias enquanto estudante, mas nunca pensou em ensinar depois de se formar em Medicina. O seu casamento com a jovem Cremilde, filha do Prof. Raposo, que estava assoberbado com trabalho, mudou as suas intenções e o Dr. Santana Maia passou a colaborar com o sogro, dando aulas de Matemática, para as quais estava bem preparado. O Prof. Raposo continuou com a disciplina de Geografia ao passo que a D. Maria Amélia e a D. Cremilde se ocupavam do Português.

Falemos agora um pouco dos alunos. Como as admissões nos caminhos de ferro e outras empresas só se faziam aos dezoito anos, a maioria já estava próxima dessa idade. Hospedavam-se em casas que os aceitavam, a maioria perto do centro, alguns mais longe, como nos Engarnais Cimeiros. Alguns faziam a sua comida, outros tomavam refeições preparadas por quem os acolhia. Tinham que viver com o conforto que as casas lhes podiam proporcionar, que não era muito. Se nas suas terras dispunham de luz elétrica ou água canalizada, enquanto permaneciam em Mouriscas tinham que se privar de tais comodidades.

Os alunos acorreram a Mouriscas em número extremamente elevado, pelo que a terra deve ter sofrido uma alteração na sua paisagem humana e na sua animação.

As aulas tinham lugar depois de o Prof. Raposo e a D. Maria Amélia terminarem, ao começo da tarde, as suas aulas na escola primária. Eram ministradas numa casa, que ainda existe, perto do centro de Mouriscas, em frente do atual parque de estacionamento e para o lado da Estalagem.

A preparação para os exames dos caminhos de ferro – que constavam de provas escritas e orais – tinha a duração de três meses e os êxitos nos concursos depressa se divulgou por todo o país ao ponto de a escola ser conhecida no meio ferroviário como Universidade Ferroviária de Mouriscas o que, como já foi dito, atraiu muita gente a Mouriscas.

Estes cursos foram extremamente importantes para muitos mourisquenses. Permitiu-lhes, sem ter que se deslocar para outras terras e sem ter que interromper as suas atividades normais, o acesso a uma formação que lhes abriu a oportunidade de trabalharem em estações dos comboios, como revisores ou nos escritórios da CP. Alguns que não tiveram nota suficiente nos exames para serem chamados para o caminho de ferro foram admitidos noutras empresas. Todos ficaram mais instruídos e subiu o nível cultural de Mouriscas.

O que se segue é uma transcrição de parte de artigo de Carlos Bento sobre o Dr. Santana Maia no sítio Mouriscas – Terra Grande, Terra Nossa, o qual pode ser lido no endereço http://motgtn.epizy.com/p001.htm.

“Entrementes, surgiu um facto novo que viria a traçar novos rumos de vida para muitos jovens mourisquenses, até, então, dificilmente, concretizáveis. Os Caminhos de Ferro haviam fechado os concursos.

Face a tal acontecimento, muitos explicandos viram goradas as suas expectativas e de modo a aproveitar os conhecimentos já adquiridos, solicitaram aos responsáveis pela Escola de Explicações que lhes ministrassem os saberes necessários de modo a poderem propor-se ao exame do 3.º ano liceal.

Aceite a pretensão e concluída com êxito esta primeira fase do ensino liceal, logo surge um novo pedido. Agora pretendiam alcançar o 6.º ano liceal e para tanto serem preparados para o efeito. Os seus desejos foram satisfeitos. O sucesso verificado nos exames divulgou-se e começaram a chegar a Mouriscas alunos de todo o País.

Foi assim que na freguesia de Mouriscas nasceu, em 1938, o Colégio Infante de Sagres que, embora não legalizado, já tinha muitos alunos. Viria a ser legalizado em 1948, chegando a ministrar o 7.º ano do liceu.”

A preparação para os exames da CP continuou nos anos 40 e ainda teve lugar no edifício do colégio que conhecemos. Depois todos os esforços foram virados para o ensino secundário.

O mourisquense Monsenhor Martinho Lopes Maia, padre, advogado e capelão militar em Elvas, onde fundou e manteve um colégio, homem de bastante iniciativa e espírito prático, contribuiu bastante para a existência do Colégio Infante de Sagres. Falou insistentemente ao seu sobrinho Dr. João Gualberto Santana Maia bem como o ao sogro deste, Prof. Matias Raposo, da conveniência de fundarem um colégio, aproveitando a experiência do curso de formação de ferroviários, dizendo-lhes que o futuro era mais para quem tivesse habilitações do que para quem continuasse a dedicar-se à pequena agricultura, que iria entrar em franca decadência.

Hoje já não temos o Colégio Infante Sagres nem a escola do ensino secundário do estado que lhe sucedeu, mas, se não tivesse existido, provavelmente não teríamos hoje a escola agrícola, que também atrai muitos jovens a Mouriscas.

Para resumir, o Prof. Raposo começou a preparar pessoas para exames de admissão aos caminhos de ferro e outras empresas, o que permitiu a muitos mourisquenses uma vida melhor. O empreendimento teve grande sucesso – ao ponto de se falar da Universidade Ferroviária de Mouriscas – atraiu muita gente de fora e criou as condições para a existência do Colégio Infante de Sagres, que ajudou muito mourisquense a ter melhores condições de vida e tornou a terra muito conhecida.

As histórias reais são muitas vezes mais bonitas do que as fantasiadas em livros. Esta é prova disso.

 

* O administrador deste blogue agradece a Martinho de Oliveira Neto os dados fornecidos para a redação deste artigo. Martinho de Oliveira Neto, reformado da CP, foi aluno da Universidade Ferroviária de Mouriscas, onde foi aluno do Prof. Raposo, do Dr. Santana Maia, da D. Maria Amélia e da D. Cremilde. Agradecimentos também a Carlos Lopes Bento pelas suas valiosas sugestões.